Nossos mestres ensinam que há quatro níveis de interpretação no estudo da Torá. O primeiro nível, Pshat, é o significado literal do Texto Sagrado. O segundo nível, Remez, é o significado figurativo, o ensinamento insinuado, contido em cada uma das palavras e dos versos dos Cinco Livros de Moisés. O terceiro nível, Drush, é o significado interpretativo e homilético - o ensinamento moral e filosófico que a Torá visa transmitir. Por fim, o quarto nível e o mais profundo é chamado de Sod, segredo - é o significado esotérico e místico das palavras da Torá, popularmente chamado de Cabalá. Pshat, Remez, Drush e Sod formam um acróstico em hebraico, a palavra Pardês, que significa "Pomar". Pois estudar a Torá em seus quatro níveis significa adentrar-se pelo "Pomar de D'us", ou seja, no Paraíso.
O Zohar, que é a obra fundamental do misticismo judaico, assim afirma: "Se você não aceita ou acredita na tradição mística, chamada "Alma da Torá", obviamente não compartilhou da Revelação da Torá, no Monte Sinai". Em outras palavras, um estudo da Torá que não inclua seus segredos é um corpo sem alma.
Apresentaremos aqui uma introdução a uma faceta dos níveis de interpretação da Torá: a Guimátria, ou Numerologia Judaica. Antes de enveredarmos pelos ensinamentos básicos da Guimátria, é fundamental ressaltar um princípio do judaísmo: de que D'us, ao outorgar a Torá no Monte Sinai ao povo de Israel, entregou a Moisés não apenas a Torá Escrita, mas transmitiu-lhe, também, a Torá Oral. O núcleo desta é o Talmud, que explica e elucida a Torá Escrita e suas leis.
Um dos famosos ensinamentos do Talmud é a afirmação de Rabi Eliezer ben Yossi Haglili, que formula 32 regras para explicar a Torá. A 29a regra é a Guimátria. Este sistema de numerologia judaica baseia-se no fato de cada uma das 22 letras do alfabeto hebraico, do Alef ao Tav, possuir um valor numérico. As primeiras 9 letras estão associadas às unidades (1, 2, 3, ..., 9); as 9 letras seguintes estão associadas às dezenas (10, 20, 30, ..., 90); e as últimas quatro estão associadas às centenas (100, 200, 300, 400).
Muitos trechos do Talmud citam a Numerologia Judaica como sendo um instrumento de apoio muito valioso na tomada de decisões, principalmente no que diz respeito à Lei Judaica (Halachá). Aprendi com meu professor, o rabino Y. David Weitman, que o Rabi Yossef Caro, autor do Shulchan Aruch, Código de Lei Judaica, revelou que a palavra Guimátria pode ser dividida em outras duas: Guei (vale) e Mitúria (da montanha). Rabi Yossef Caro explicou que quando temos uma dúvida sobre algo que, a princípio, não entendemos na Torá, esta nos parece ser uma "montanha", de difícil escalada. E a Guimátria, disse o Sábio, transforma a montanha à nossa frente em um "vale" de compreensão.
Vejamos um exemplo de Guimátria aplicada, que se encontra numa passagem talmúdica que discute as leis de um nazirita - pessoa que, nos tempos bíblicos, fazia votos de se abster de tomar vinho, cortar o cabelo e ter contato com os mortos. No Talmud, Rabi Matná afirma que a duração do nazirato é de 30 dias. Esta lei não é explicitada na Torá Escrita, mas na Torá Oral. Contudo, Rabi Matná, ao fazer uso da Guimátria, demonstra que esse ensinamento sobre o nazirato também se encontra, mesmo que de forma oculta, no Pentateuco. Rabi Matná aponta que a palavra "yihye - será" (Números 6,5), que no Texto Sagrado é usada para se referir ao nazirita, tem valor numérico de 30, revelando, portanto, que a duração do nazirato deve ser de 30 dias.
Associando números às letras hebraicas
A Torá possui 304.805 letras, formando 79.976 palavras. Ao analisar o verbo "contar", podemos defini-lo como: "verificar o número", "a quantidade de", "computar". O verbo contar também significa - em alguns idiomas além do português - "narrar" ou "relatar", como em "contar uma história". Desta forma, fica ressaltada a interação muito íntima entre números e letras, já que o verbo contar pode englobar os dois significados.
A palavra grega "geometria", um ramo da matemática que estuda as dimensões e suas relações numéricas, assemelha-se à palavra hebraica "Guimátria", que, na língua portuguesa é chamada de "gemátria". Mais tarde, surgiu o termo latino "gramática" para identificar o estudo da língua. Outra vez, vê-se a ligação entre números e letras, pois "Guimátria", "geometria" e "gramática" parecem ter a mesma etimologia. É notável que Guimátria faz lembrar duas outras palavras da língua grega: Gama e Tria. Sabe-se que a letra Gama é a terceira - Tria - do alfabeto grego, assim como a letra Guímel também é a terceira letra do alfabeto hebraico, possuindo um valor numérico de três.
Quando engenheiros ou arquitetos planejam construir algo, começam por desenvolver um projeto, uma planta. De forma similar, o Midrash cita que D'us, ao criar este mundo, utilizou a Torá como sua planta e as letras do alfabeto hebraico como agentes criadores. As letras hebraicas do Lashon Hakodesh, a Língua Sagrada, são consideradas como "pedras", enquanto as letras das demais línguas são os "tijolos". Pedras são criadas por D'us, tijolos são feitos pelos homens.
A Guimátria o confirma: a palavra hebraica Kochav significa "estrela". Esta palavra é composta das letras Kaf, Vav, Kaf e Beit e pode ser desmembrada em dois conjuntos de duas letras cada. O primeiro conjunto, com as letras Kaf (valor numérico 20) e Vav (6), soma 26 e é o valor numérico do Tetragrama (o Nome mais elevado de D'us); o segundo, com as letras Kaf (20) e Beit (2), soma 22, em uma alusão ao número de letras que compõem o alfabeto hebraico. Daí deduzimos que a Luz Divina ilumina todo o espectro do Universo, gerado pela combinação das 22 letras do alfabeto hebraico.
Um dos elementos relacionados à Criação do mundo é o conjunto das 10 Sefirot (no singular, Sefirá, palavra que também significa "contagem", como na expressão Sefirat Haômer - a Contagem do Ômer). A Torá também é chamada de Sefer Torá (Livro da Torá) e a pessoa habilitada a escrever a Torá é o Sofer, o escriba, que também conta as letras da Torá para saber qual a posição exata de cada uma. A palavra hebraica para "número" é Mispar, similar à palavra hebraica Sipur, que significa "história", "conto", "narração". Vemos, pois, que Sefirá, Sefer, Sofer, Mispar e Sipur são palavras que têm em comum, em sua raiz etimológica, estas três letras: Samech, Pei e Reish, cujos valores numéricos somados dão 340 (60 + 80 + 200) - exatamente o mesmo que na palavra Shem (nome), formado pelas letras Shin (300) e Mem (40). Notamos, uma vez mais, a associação entre números e nomes.
Conseqüentemente, percebe-se que a Criação do mundo é interpretada como uma fusão de padrões numéricos. Já que as letras estão associadas a números, a obra cabalística Tanya, escrita pelo Alter Rebe, Rabi Shneur Zalman de Liadi, explica que uma vez que D'us criou o mundo através da fala, os padrões numéricos criados pelas letras dos Dez Pronunciamentos da Criação refletem a interação das forças criativas de D'us. Os místicos judeus atribuíam especial importância à Guimátria, pois, conforme vimos acima, D'us criou o mundo com as letras do alfabeto hebraico. Usavam a Guimátria para descobrir os significados secretos dos Textos Sagrados, para, combinando várias letras, encontrar poderosos Nomes de D'us ou de anjos ou, mesmo, determinar o número exato de palavras que cada prece deveria conter.
A aplicação da Guimátria é feita, basicamente, de quatro maneiras:
A primeira implica em substituir uma palavra por outra de igual valor numérico. Por exemplo, diz o Midrash (Bereshit Rabá 68,12) que a palavra Sulam (escada) tem valor numérico de 130, idêntico à palavra Sinai. Esta aplicação de Guimátria faz referência a uma passagem no primeiro livro da Torá, Bereshit, em que é relatado um enigmático sonho do patriarca Jacob: "E saiu Jacob de Beersheva, e foi a Haran. E chegou ao lugar e lá pernoitou, porque já se pusera o sol. E tomou das pedras do lugar, e colocou-as à sua cabeceira, e deitou-se naquele lugar. E sonhou, e eis que uma escada (sulam) apoiava-se na terra, e seu topo chegava aos céus .... ".
A Guimátria, ao demonstrar que as palavras sulam e Sinai têm o mesmo valor numérico, oferece uma das várias interpretações do sonho de Jacob: de que a escada, que ascendia aos Céus, simbolizava a Revelação da Torá que seria entregue a seus descendentes no monte Sinai.
Um outro exemplo: O nome Avraham (Abraão) possui o valor numérico de 248, que é o mesmo de Raziel, um anjo cujo nome, em hebraico, significa "segredos de D'us". Além de ambos os nomes, em hebraico, possuírem 5 letras, há vários paralelos entre Avraham e Raziel e a Guimátria os confirma. Raziel foi quem revelou os segredos celestiais ao primeiro homem, Adão, e estes foram escritos em um livro feito de safira, chamado Sefer Raziel. Trata-se de obra de grande santidade e serve como segulá (remédio espiritual) para proteger o lar contra o fogo e outras calamidades. O patriarca Avraham também conhecia os mistérios celestiais e foi o autor do Sefer Yetzirá, o Livro da Formação, que contém muitos segredos a respeito da Criação do mundo. O Sefer Raziel e o Sefer Yetzirá são considerados os dois mais antigos textos do misticismo judaico.
A segunda aplicação da Guimátria implica em interpretar cada letra, em separado. O nome Yaacov, por exemplo, compõe-se das letras Yud (valor numérico 10), Ayin (70), Kuf (100) e Beit (2). O nome do patriarca, portanto, faz referência aos "10" mandamentos, aos "70" anciãos de Israel, à dimensão do Tabernáculo, de "100" amot (medida talmúdica de comprimento), e às "2" Tábuas da Lei.
Segundo seu valor numérico, pode-se substituir um número por uma palavra. Exemplo: Em Bereshit 14:14, lemos que Avraham foi em socorro de seu sobrinho Lot com 318 servos. Sabemos que o único servo de Avraham citado na Torá pelo nome é Eliezer, palavra com valor numérico também de 318. Os místicos deduzem daí que Avraham foi à guerra para salvar o sobrinho acompanhado de apenas um único homem, Eliezer.
A terceira aplicação: podemos, segundo o seu valor numérico, substituir uma palavra por um número. Em Bereshit 42:2, encontra-se a palavra Redu, que significa "descer para lá" (para o Egito) - cujo valor numérico é 210. A palavra faz alusão aos 210 anos em que os judeus viveram no Egito.
Não podemos deixar de mencionar que a Guimátria é uma ferramenta muito importante para o estudo da Cabalá. Com o decorrer dos anos, principalmente em virtude de uma maior disseminação desta ciência, nossos sábios passaram a utilizar outros sistemas mais complexos de numerologia judaica. Entre eles podemos citar as transformações Atbash, Albam, Atbach, Achas-Beta, Ayak-Bachar, Ach-Bi, além dos sistemas, Kollel, Milui, Neelam, Rashei e Sofei Teivot, afora outros.
Há ainda um exemplo interessante de Guimátria que leva em consideração a forma gramatical da palavra. Em Êxodo 35:1, encontramos a frase: Eleh Hadevarim - "Estas são as coisas (ou palavras)...", seguida pelo versículo que trata das leis do Shabat. Nossos sábios interpretam a palavra Eleh ("estas" com as letras Alef, Lamed e Hei), tendo o valor numérico de 36. Os místicos consideram que a palavra "Hadevarim - palavras ou coisas" alude ao valor de 3 (três), pois, como explica o Rabino Yossef ben Hanina, se o texto usasse a forma singular Davar, poderíamos acrescentar 1; se usasse a forma plural contraída Divrei, poderíamos acrescentar 2. Mas como o texto usou a palavra no plural, escrita por extenso, Devarim, deve-se acrescentar 3. Portanto, Eleh Hadevarim somam um valor de 36+3=39. Este número faz alusão aos 39 principais trabalhos proibidos no Shabat.
A aplicação da Guimátria, assim como a própria Torá, é infinita. O antigo texto cabalístico do Sefer Yetzirá revela que podemos calcular o nome de uma pessoa juntamente com o da sua mãe, determinando assim muitas informações a respeito das influências astrológicas sobre a sorte dessa pessoa (Mazal), indicando desta forma o seu signo, planeta e anjo associados, além do dia da semana mais propício a atrair as boas influências, entre muitas outras informações.
Exemplificando: suponhamos que uma pessoa tenha o nome hebraico de Mazal e o de sua mãe seja Esther. Ao calcular a soma de Mazal (77) com Esther (661), temos o valor de 738. Com este número, utilizando as tabelas e cálculos apropriados, encontramos as seguintes associações para esta pessoa: Signo: Libra (Moznaim); planeta: Júpiter (Tsedek); metal: Ferro (Barzel); dia da semana: 5ª feira; anjo: Tsidkiel; letra hebraica: Tav; emanações (Sefirot): Fundamento (Yessod) com Reinado (Malchut); cor: Azul (Cachol); além de outras informações tocantes à personalidade da pessoa.
É verdade que nossos sábios ensinam "Ein Mazal LeIsrael" - ou seja, que o povo de Israel não está limitado ao poder dos astros, mas mesmo eles admitem que cada um de nós nasce com uma influência astrológica que influenciará na determinação de suas características e talentos. O estudo da Torá e a prática dos mandamentos Divinos, principalmente de boas ações, são a forma correta de canalizar as influências Divinas que têm o poder de tudo transformar para o bem.
Fica subentendido que, na visão judaica, cada número tem o seu significado e o seu porquê, tanto no conceito positivo como no negativo - pois D'us criou o mundo onde predomina a dualidade e a pluralidade. Com exceção de D'us, tudo no mundo tem o seu oposto. Ainda assim, não há número que seja "ruim". É verdade que, no judaísmo, há números de significado muito especial, como o 18, que representa Chai - vive. Também o 77, que é valor da palavra Mazal - sorte. Os atributos da Misericórdia Divina estão associados ao número 13, assim como a força (Koach) tem valor numérico de 28. No que toca ao número 7, sabemos que todos os sétimos são queridos, pois o número sete também faz alusão à palavra Sova - abundância. É também famoso o número 5, que além de lembrar a alegria do Criador, ajuda a afastar as influências negativas. Outro número muito importante é o 26, que é o valor do Nome Inefável de D'us, ou Tetragrama, conhecido por "Ha-va-ie". Este Nome Divino é formado por quatro letras: Yud (10), Hei (5), Vav (6) e Hei (5) e se refere ao Eterno, ou seja, a D'us Infinito, que transcende a Criação, a natureza, o tempo e o espaço em sua totalidade; ou seja, é o nível de Divindade que criou o Universo do nada e que continuamente sustenta toda a Criação.
Em nosso livro, "Numerologia judaica e seus mistérios" (editado no Brasil pela editora Maayanot), mostramos muitos tipos diferentes de codificações na Torá por meio dos números, tabelas, além de uma enorme quantidade de aplicações com exemplos e explicações, de acordo com a mais seleta tradição judaica, sobre os significados de nomes, astrologia judaica e, principalmente, dos números. Não podemos deixar de mencionar o Pirkei Avot, um dos tratados mais estudados da Mishná: "Rabi Eleazar, filho de Hismá, dizia: Os cálculos das épocas do ano e a numerologia judaica (Guimátria) são os aperitivos da sabedoria". Muitos dos nossos sábios, tais como os rabinos Moshe Cordovero, Shlomo Alkabets, Avraham Abuláfia, Yossef Gikatilla, Nathan Nata ben Shlomo Spira, o Arizal, o Baal Haturim (que fez seus comentários das parashiot, ou "porções" da Torá, embasados principalmente na Guimátria), entre muitos outros, concordavam que a ciência da Guimátria estimula a alma e atiça a vontade de se aproximar, cada vez mais, da Infinita Sabedoria de D'us.
Já que estamos às vésperas do Ano Novo Judaico de 5767, vamos analisar o que a Guimátria diz sobre o número 67. Seguem-se duas excelentes expressões, em hebraico, cujo valor numérico é 67. A primeira é Kol Tuv (tudo de bom) e a segunda é Yom Chag (dia de festa). O acróstico com as letras que compõem o próximo ano é formado por Tav, Shin, Samech, Zayin (5767), podendo ser lido como: "Que seja um ano com tudo de bom" ou, "Que seja um ano em que cada dia seja alegre como um dia de festa".
Que possa ser a vontade do Todo-Poderoso iluminar os nossos caminhos para que possamos entrar numa nova era e navegar no mar da Torá com grande sabedoria e, principalmente, com muita paz e felicidade.
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